O Sonho de Uma Poesia

18:25 Ricardo Rodrigues 0 Comments


     Arlequim morava em um pequeno vilarejo no topo de uma montanha. Crescera ali cercado pela natureza e sua extraordinária beleza. Ele era um apaixonado por música e a percebia em tudo, desde o movimento do vento chacoalhando as árvores, até a harmonia suave e gostosa dos instrumentos que conhecia. No inverno, sua família reunia-se diante da lareira e enquanto a senhora Maria, sua mãe, servia um bom e cremoso chocolate quente com biscoitos, senhor José, seu pai, retirava do bolso sua pequena e antiga gaitinha de ouro e começava a soprar, enchendo a sala de música que outrora inspirou sua juventude. Depois de muitas lembranças musicadas, ele entregava o pequeno instrumento ao filho que soprava sempre uma música nova que havia aprendido com outro gaiteiro do povoado. Começava meio desafinado, mas logo acertava as notas e novamente a casa enchia-se de música. Inspirado pela música do filho o senhor José começava a declamar poesias que falavam do tempo, do amor, da juventude e tantos outros temas que misturada a música fazia a casa encher-se de luz e quem passava por ali naquela hora e olhasse para o céu teria a impressão de que a lua e as estrelas paravam para contemplar o evento da família. E esta pequena festa familiar durava até a madrugada, quando já não havia mais chocolate, nem biscoitos e o pequeno Arlequim, já cansado, adormecia nos braços do pai.
     Os anos passaram e Arlequim cresceu. Tornou-se um jovem forte e belo, que ajudava o pai na pequena carpintaria da família. As moças do vilarejo disputavam entre elas o coração do rapaz e as escondidas o seguiam, quando ele estava na floresta cortando árvores para a carpintaria, quando ele descia ao riacho para tomar banho e não descansavam, até quando ele, durante a noite deitava no campo de trigais, e ficava contemplando as estrelas, elas vinham devagar sem fazer barulho, e ficavam suspirando, admirando os encantos do jovem Arlequim. Porém o coração do rapaz estava longe do pequeno vilarejo. Ele não desejava desposar nenhuma das moças que viviam ali, e não era por orgulho, nem tampouco por feiura, já que o povoado era rico de moças belas e prendadas. Acontece que o jovem estava vivendo as explosões de desejos e sentimentos típicos, de todo rapaz da sua idade, e ele ansiava ir embora do povoado e sair andando por todos os lugares, conhecendo e desbravando o mundo. Tudo ali havia se tornando pequeno diante dos grandes sonhos de aventura de Arlequim. Por isso ele gostava de admirar a imensidão do céu e o infinito de estrelas, e queria descobrir o que havia além de tudo, além das montanhas, do mar, das grandes cidades e prados.
     O senhor José, como todo bom pai, conhecia bem o coração do filho, e sabia que um dia ele partiria dali e que talvez nunca mais o veria. E preparava o coração para este dia, pois sabia que dos saraus que os três faziam entre si, no futuro seria apenas lembranças e perfume do que já passou. Ele então como dever de pai acompanharia a partida do filho olhando do portão de casa, sua única ação seria fingir-se de forte e abraçando Maria, a consolaria. Ele jamais tentaria impedir esta despedida, pois sabia que assim como os pássaros voam para longe dos pais para cumprir seu destino, ele não poderia segurar Arlequim.
      Os dias passavam, e Arlequim não conseguiu segurar mais o desejo de buscar sua aventura. Pegou uma pequena mala, colocou algumas roupas essenciais e uns dois pares de sapato, pegou um pão e algumas frutas para viagem. Não pegou muita coisa, pois não queria peso na viagem. Depois pediu que a mãe o abençoasse e que sempre rezasse por ele, pois onde ele estivesse sempre lembraria dela. Depois olhou demoradamente bem dentro dos olhos do pai e sentiu que ele também o olhava tentando desvelar sua alma. Abraçou o senhor e ambos tentaram conter as teimosas lágrimas que insistiam em sair, expulsas por um coração dolorido pela partida. Oswaldo Montenegro definiria muito bem aquele momento como a constante mania da vida em comungar as partidas com as eternas saudades. Depois do abraço demorado, o senhor José pegou uma caixinha de prata e entregou ao filho. Curioso Arlequim abriu a delicada caixa e viu ali dentro vários envelopes e em um canto sobre estes papéis, adormecia a pequena gaita de ouro do pai.
     - Aqui está o meu maior tesouro filho. - disse o senhor José - Todas as minhas poesias e toda a minha música. As rimas que deixaram mais bonita a minha vida, e a música em forma de uma gaita chorosa, que com seus trites e alegres acordes me levavam ao passado, dava-me força para o presente e inspirava meus sonhos para o futuro. Saiba meu filho que o mundo lá fora é lindo, cheio de cores e amores. Sedutor e apaixonante. Porém, muitas vezes ele pode ser escuro, triste, frio, cheio de solidão e maldades. Mas o que ele será para nós é uma decisão que cada um deve tomar. O mundo será para cada pessoa, o que ela escolher, porque são nossas escolhas que clareiam ou escurecem o mundo.
     Arlequim ouvia com atenção tudo que o pai falava.
    - Que suas escolhas sejam as que deixam o mundo mais belo. Por onde você passar semeie flores e pode espinhos, declame principalmente as poesias que falam de amor, pois de ódio e lágrimas o mundo já está cansado. E na música, só toque aquelas que façam as pessoas se sentirem bem, felizes, amadas e com as esperanças renovadas. -continuou o pai - E quando a tristeza for inevitável e tentar lhe roubar a felicidade e  a esperança, não tenha medo de abrir esta caixa e declamar uma poesia e depois toque uma música demorada que revigore sua alma e você verá algo mágico acontecer em seu coração. E por fim, meu querido Arlequim, não deixe que nenhuma pessoa saia da sua presença, sem experimentar a emoção poética e a alegria musical. Somos responsáveis em fazer o outro feliz, porém não esqueça que a felicidade está dentro de cada um. 
     Arlequim acomodou a caixa de prata na mala, abraçou novamente os pais e como o senhor José previra, ele e a esposa ficaram contemplando a partida do filho do portão da casa, até que o rapaz sumiu na distância da estrada.
      No seu projeto de desbravar o mundo o primeiro objetivo de Arlequim era conhecer o mar. Ele sempre ouvira que o mar ficava ao leste e tirando sua pequena bússola do bolso, consultou a direção, e para lá seguiu. Ele caminhou o dia todo, passando por uma longa plantação de milho, sem medo colheu algumas espigas, fez uma pequena fogueira, as assou na brasa e as saboreou. Em seguida acomodou-se debaixo de uma árvore onde dormiria para descansar as fadigas do corpo e pela manhã retomaria seu caminho em direção ao mar. Não  demorou a pegar no sono, e dormiu profundamente, acordando somente quando os primeiros raios de sol começaram a despontar no horizonte. Ao abrir os olhos para o novo dia, assustou-se bruscamente ao ver que ali do seu lado com um olhar cheio de curiosidade, estava um garotinho que deveria ter uns oito anos, que agachado o observava atentamente.
    - Quem é você? - pergunta Arlequim.
    - Eu sou o Miguel.
    - Miguel?! Cadê os seus pais? O que fazes aqui sozinho?
    -Sabe o que é moço, minha mãe morreu e me deixou só. Ela me disse que meu pai morava ao leste, e antes de morrer deixou-me uma carta que me possibilitaria encontrá-lo. Ela me disse que seria um vilarejo ao final desta estrada e há dias que caminho por ela e não encontro vilarejo nenhum. Estou com fome e minha água acabou e quando vi você dormindo, meu coração se alegrou, pois não me pareces uma má pessoa.
     Arlequim compadeceu-se do pobre garoto e tirou da bolsa o pão e uma espiga assada que havia sobrado, e com bom grado partilhou com a criança. Enquanto comiam a criança se alegrou, mas após a simplória refeição, Miguel ficou triste e começou a chorar.
    - O que houve meu amigo? - questionou Arlequim - porque desatas a chorar?
    - É que eu acho que acabou-se tudo. Minha mãe morreu e eu nunca vou encontrar o meu pai.
    - Ei, se anima pequeno. Não é hora de perder a esperança... - e abraçando o pequeno garoto disse: - Venha comigo, também estou indo para o leste e prometo lhe ajudar a encontrar seu pai.
    - Jura juradinho?
    - Juro! E promessa é dívida. Agora venha aqui, vamos sorrir um pouco.
     Arlequim pega a caixa de prata do pai, revira alguns papéis e encontra um envelope onde estava escrito no local em que se escrevia os dados do destinatário: "Para alegrar e devolver a esperança aos amigos tristes!" Ele então abriu e tirou o papel que estava guardado ali dentro e contemplou uma pequena poesia, escrita com belas e desenhadas letras douradas. Ele olhou para Miguel, lembrou das palavras do pai e não pensou duas vezes. Segurou a mão da criança e começaram a caminhar pela estrada. Miguel ouvia atento os versos que Arlequim declamava, que eram mais ou menos assim:

"Querido amigo não chores
e nem penses que estás só.
Se sofrestes desilusões na vida,
 existe uma semente que reaviva
e o sentido se explica
e mesmo se a esperança está perdida
o coração conhece o caminho,
que passando pelas feridas consegue 
reencontrar a vida.
E que vida é esta,
tão bela, tão humilde,
cheia de lágrimas,
porém não se esvazia de alegrias.
porque a felicidade está em nós,
e reaviva a chama,
de uma esperança esquecida.
Acredite amigo meu,
não perca a fé.
Alegre-se e se apegue, 
somente ao sentimentos bons desta vida."



     Depois de declamar estes versos, Arlequim pegou a gaita e começou a tocar a antiga canção da amizade. E estrada a fora os dois novos amigos puseram se a dançar. E o tempo passou depressa e o sol começou a se pôr. Foi quando Miguel viu ao longe um pequeno vilarejo. Os dois correram e ao chegar na pequena vila, colheram algumas informações e como Arlequim havia prometido, conseguiu encontrar o pai de Miguel, que ao ver o filho chorou de emoção e pediu perdão, por um dia ter abandonado sua mãe quando ainda estava grávida e prometeu ao filho nunca mais abandoná-lo. Naquela noite ele ofereceu um jantar e uma cama quentinha para Arlequim, que alegrou a noite com mais poesias e músicas.
     Logo que raiou o novo dia, Arlequim pegou suas coisas, despediu-se de Miguel e de seu pai e partiu rumo ao leste, ainda ansiava encontrar o mar. Lá no fundo ele sentia que seria quando ele deparasse com a imensidão das águas que seu destino se cumpriria, e então saberia qual o novo rumo deveria tomar e qual seria a nova aventura que iria viver. Caminhou muito durante dias, passou por outros vilarejos, fez novos amigos por onde passava com suas poesias acompanhadas pelas alegres canções de sua gaita deixava amizades e renovadas esperanças e sonhos.
     Enquanto passava por um campo de tulipas de várias cores, Arlequim encontrou uma bela moça colhendo flores. Aquela cena chamou a atenção do rapaz, que sempre gostou de pessoas que sabia apreciar as flores. Para ele estas pessoas são dotadas de grande sensibilidade. A moça assustou-se com a presença de Arlequim e por um momento sentiu medo. Percebendo que sua presença havia amedrontado a linda donzela, ele procurou logo acalmá-la. Disse a ela quem era e sem medo a bela revelou seu nome: Bianca. Não demorou muito, os dois sentaram-se entre as tulipas e iniciaram uma conversa. Quem passasse por ali imaginaria que eram um casal de namorados ou amigos de longas datas. Falaram de sonhos, música, tristezas, coisas bobas e amor. E foi quando falaram de amor que os olhos de Bianca brilharam com mais intensidade.
    - Ah, o amor! - suspirou Bianca - Tudo que eu mais quero na vida é amar, amar e amar.
   - Minha nossa! - exclamou Arlequim demonstrando surpresa. - Já vi tanta gente falar e compor sobre o amor, mas você trás consigo uma eloquência na voz e um brilho nos olhos, que eu diria que o que você mais ama na vida é o amor.
     - Sim, Arlequim. Você têm razão.
   - Creio já deves ter um jovem enamorado, que seduzido por este seu encanto e no desejo de desposá-la, já a pediu em casamento. Irão morar em uma casinha cheia de flores nas janelas, onde a cerca é de madeira e coberta por uma fina camada de hera, e no jardim um gramado bem verde, que mais parece um tapete, onde vocês dois se sentarão juntos com os filhos e contemplarão o pôr do sol todos os dias, bebendo uma fresca limonada e comendo biscoitos de mel com canela.
     - Sim! Sim! Sim! - gritou a moça abrindo os braços, jogando em seguida o corpo sobre as tulipas. - Isso é o que eu mais quero Arlequim. Mas até o dia de hoje, não me havia aparecido ninguém que conseguisse desvendar este sonho em mim. Até você chegar.
    Bianca então olhou apaixonadamente para Arlequim, arrancou duas tulipas, uma entregou ao rapaz e a outra enfeitou-se, ajeitando a bela flor no cabelo.
    - Arlequim, você carrega em si o amor que eu sempre sonhei. Você já beijou alguém com todo esse amor?
    - Não! Nunca beijei ninguém. - Bianca sorriu, e seu sorriso fez corar o pobre Arlequim.
    - Declame para mim Arlequim, uma  poesia que fale de amor e depois toque em sua gaita uma canção que expresse nas notas jogadas ao vento a beleza suprema deste sentimento.
     Arlequim mais uma vez abriu a caixinha de prata e pegou mais um envelope amarelado, onde lia-se: "Para aqueles de coração apaixonado pelo amor." Abriu e tirou a poesia que estava ali e começou a declama-la:

Amor, sentimento puro,
doce e suave,
que todos os meus caminhos abre,
e em cada estrada aberta, com um tapete florido
minha chegada celebra.
Amor, como é bom chamar seu nome,
saber que dentro de mim
seu calor me consome,
e neste fogo ardente,
minha vida se revela,
descobre horizontes.
Tu és amor,
o vento que me bagunça os cabelos,
a água que mata-me a sede,
o orvalho que revigora o meu amanhecer.
És sol, nuvem, estrela e lua,
todos os astros se tornam um para quem conhece a ti.
Não existe mais dia nem noite,
os meses desaparecem e os anos não se contam mais,
porque  para o amor nada mais importa,
a não ser tão somente amar,
e amar... amar... e amar.
     Então pegou a gaita e tocou a mais bela canção de amor. Quando terminou, viu lágrimas nos olhos de Bianca. A moça não tinha palavras, então aproximou-se de Arlequim e roubou-lhe um beijo. No começo ele ficou assustado, mas não demorou a corresponder o carinho. Ficou no vilarejo em que a moça morava por três meses e partiu. Afinal, ainda inquietava em seu peito a vontade de chegar até o mar. Este desejo era mais forte que qualquer outro sentimento que tentasse persuadi-lo a ficar. E mais uma vez juntou suas poucas coisas, e partiu rumo ao leste.
     E mais uma vez viajou durante dias, passando por novos vilarejos, conhecendo novas pessoas e levando sua música e poesia, até que um vento forte soprou e trouxe um perfume diferente no ar, ele então forçou os olhos a avistarem o horizonte, e então ele viu como uma fina linha azul, no final daquela estrada, o mar. De longe parecia frágil e pequeno, mas de acordo em que ele se aproximava, o azul aumentava, até que seus pés tocaram a areia da praia ele contemplou a imensidão e a imponência daquelas infinitas águas. Os olhos de Arlequim, encheram-se de lágrimas, e ajoelhando-se na areia elevou aos céus sua prece de gratidão. E então entrou nas águas salgadas e brincou, fez castelos, colheu conchas e estrelas do mar, e depois vencido pela exaustão da viagem, dormiu ao lado do seu castelo de areia, e ali sem que ele percebesse, findou-se aquele dia e a noite correu ligeira trazendo uma nova manhã.
    Arlequim acordou quando a maré começou a molhar seus pés. Olhou  mais uma vez o mar, procurou a bolsa, queria pegar uma gaita e tocar uma música que ele mesmo compôs para aquele momento, mas não encontrou. Seu coração ficou acelerado e começou a entrar em desespero. Chegou a pensar que talvez ela teria caído ao mar no momento de euforia, mas ele lembrava bem que havia deixado ela na praia, bem ali onde ele adormecera. Ele olhou para os lados e então viu. um pouco longe de onde estava um velho sentado sobre um pequeno tronco, que no passado sustentara alguma árvore daquele litoral, até vir abaixo. Ele notou que o velhinho estava diante de uma fogueira olhando para as chamas sem se mexer. Talvez este homem saberia onde estava sua bolsa, pensou Arlequim caminhando na direção onde estava o homem. Chegando, notou como eram branca e comprida a barba daquele homem, notou também que suas roupas eram um pouco surradas, mas de uma brancura que ele nunca havia visto. Então ele percebeu que o velhinho assava dois peixes na fogueira e que do lado dele estava sua bolsa.
   - Arlequim, que bom que acordou! -  disse o velho - Sente-se, nosso peixe está quase pronto. Espero que gostes de peixe para desejum, pois é  só o que temos.
    - Como o senhor sabe meu nome? - Perguntou Arlequim assustado, imaginando que aquele homem talvez teria mexido em suas coisas.
    - Não tenha medo meu filho. Sente-se, pegue sua bolsa. Talvez uma boa música anime nossa manhã. - disse o velho estendendo a bolsa para Arlequim. - E não penses  mal de mim. Eu não mexi em suas coisas.
      -Se não mexeu nas minhas coisas, como sabe meu nome e que aqui dentro tem um instrumento musical?
     - Ah, eu sei de tudo. Nada que está debaixo deste céu fica escondido dos meus olhos. Nem mesmo os fios de cabelo de sua cabeça caem sem que eu saiba.
     Arlequim pensou que devido a idade avançada, o pobre velho estava demente, embora estivesse confuso.
    - Já disse para sentar-se Arlequim, venha comer o seu peixe que já está pronto. Não fique com medo, eu não estou demente. Já disse que sei das coisas porque nada foge aos meus olhos.
     Arlequim sentou-se devagar, pegou o graveto de madeira que foi usado para assar o peixe, e olhou o animal assado, depois sentiu o cheiro e viu que era bom, mordeu com receio, sentiu o gosto e agradou-se. Então começou a  comer mais rápido, impulsionado pela fome.
     - Como demorastes, estava ansioso esperando sua chegada. Mas foi boa a demora, sem ela não terias vivido tantos momentos bonitos e poéticos. E fiquei feliz com sua decisão firme para que este encontro acontecesse, nem mesmo os belos e apaixonados olhos de Bianca lhe tirara do coração este desejo.
     Arlequim estremeceu e começou a acreditar que realmente aquele senhor sabia de tudo. Pois não tinha nada na bolsa que pudesse informá-lo da existência de Bianca, nem mesmo ele havia citado seu nome. E ficou mais assombrado porque aquele homem sabia que ele estava viajando para encontrar o mar, e o esperara ali. O velhinho olhou nos olhos de Arlequim e sorriu, compreendendo o assombro do rapaz, então gargalhou gostosamente.
     - Eu te disse meu filho, eu sei de tudo. Antes mesmo que tu te formastes no seio da sua mãe, eu já o conhecia.
     - Quem é o senhor afinal? Como podes saber todas as coisas?
     - Meu querido, não me reconheces? Eu sou o dono do mar, o criador da terra, o principio de todas as coisas e o fim. Fui eu quem colocou em seu coração o desejo de vir até aqui, pois é de pessoas com a sua coragem que preciso na minha grande missão. Você atendeu o meu chamado e aqui estás.
     - Que missão é esta?
     - A missão de avançar para as águas mais profundas. Olhe bem o mar, agora que toda euforia da chegada passou, não vês nada?
     Arlequim olhou o horizonte das águas e percebeu que vários barcos partiam alguns distantes ao ponto de começarem a desaparecer do alcance das vistas e outros ainda perto.
     - Em cada barco deste está sendo conduzido por um rapaz, que assim como você, decidiu deixar sua casa para encontrar o mar. Chegando aqui, descobriram que o mar não era o local da chegada e sim o ponto de partida. Então assumiram a missão que eu dei e partiram. Mas não esqueça que quem os chamou até aqui fui eu, pois a missão exige muitos trabalhadores e cada um com seu dom a cumpre com maestria e amor. Por isso inquietei seu coração para que viesses até mim, pois sei que o seu dom de fazer música e de poetizar a vida e suas cores, fará de ti um grande operário neste trabalho, e eu tenho certeza que com estes dons cumprirá bem seu serviço.
     - E que missão é esta? O que queres que eu faça?
   - A missão, jovem Arlequim, é avançar para as águas mais profundas, e você se tornará um pescador de homens.
     Arlequim olhou para aquele senhor e seus olhos encheram-se de lágrimas, agora sim ele sabia quem era e qual a grande aventura que a vida lhe preparara. Ele beijou a mão do velhinho e sorriu. Foi um sorriso bem largo acompanhado de um sonoro "SIM." O senhor então apontou para um barco na areia e entregou as chaves para Arlequim, que entendeu o que devia fazer. O rapaz foi até o barco, empurrou até as águas e subiu. Acenou com a mão para o velhinho e sorriu, e recebeu em troca outro sorriso acompanhado de um aceno também de mão.
     E foi assim que iniciou a grande aventura desejada por Arlequim, que partiu mar adentro a cumprir sua missão. E nesta aventura descobriu que a poesia e a música, além de alegrar e dar brilho a alma, pode ser a mais sublime e pura oração. Deste mar ele só saiu quando seu corpo soltou o último suspiro e sua alma ansiou aventurar-se no céu, mas isso só aconteceu quando a sua missão em alto mar se concluiu.
                                               
                                                       Ricardo Rodrigues





Quando li o conto "O Sonho de Uma Flauta" do escritor alemão Hermann Hesse, fui tomado de uma grande emoção. Este conto abriu-me a alma e me fez ver que o mundo pode ser mais bonito e as pessoas podem se amar mais. Foi por isso que decidi escrever este conto "O Sonho de Uma Poesia," pois acredito no poder de cada um de levar beleza e leveza a vida dos outros. Que sejamos mais poetas e músicos da esperança, este é o meu desejo.

Imagem: Mauro Henrique

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