Efúgio

18:41 Ricardo Rodrigues 0 Comments


      
Para Cora Coralina que em uma madrugada fugiu da Cidade de Goiás com Cantídio

     Melânia nunca amou de verdade nenhum homem em toda a sua vida. Isso não significa que ela nunca soube apreciar as nuances e belezas do que seria o amor. Ela amou os livros, a poesia, a música boa de seu tempo, o cheiro de café quente e do bolo fofo saído do forno, o crepúsculo e os sete filhos. Abelardo, o mais velho, responsável, olhos da mãe, cabelos do pai. Roberto, segundo filho, introvertido, cheio de sardas. Gioconda, primeira filha mulher, terceira parição, maliciosa com ares de feminismo. Brenda, segunda filha mulher, mandona e implicante. Francisco, endiabrado, sempre de estilingue na mão, terror dos pássaros e das janelas da vizinhança. Pedro e Paulo, os caçulas, gêmeos, vestimentas iguais, personalidades diferentes. Pedro, efeminado e pirracento, Paulo carente e manhoso. 
      Melânia, nos tempos em que desfrutava a mocidade, não se achava bonita. Bela e cheia de graça era Rosa, sua irmã mais velha. Esbelta, olhos castanhos, pele lavada e perfumada com leite de rosas. Ela arrumou um bom casamento, com o filho do prefeito, futuro deputado estadual. Diferente de Melânia, a moça de cabelo ressecado, sardas, quadril largo. Corria o risco de virar solteirona, beata de porta de igreja com o rosário sempre nas mãos, e isso ela não queria de forma alguma. 
     – Moça feia ou malcuidada não casa. – Dizia sua mãe, Dona Carol, esposa venerada do Capitão Simão. – Lave a cara, penteia o cabelo e ande sempre arrumada. 
     E mesmo seguindo à risca os conselhos experientes da mãe, Melânia não desencalhava, e moça desesperada para casar era um perigo. Acabava se iludindo e não arrumava bom partido, além de ficar falada. Tempos difíceis para mulher eram aqueles de brutas eras de homens e de joguetes femininos em masculinas mãos. 
      Os anos passaram e os ares de mocidade começaram a passar também. Nada de Melânia arranjar casamento. O medo da beatice estava cada vez mais estampado na face triste e desesperançosa da manceba. O desespero e o mau humor eram evidenciados em seu comportamento diante das cobranças sociais. Rosa, sua irmã, casou, Beatriz, sua melhor amiga, também se casou e até Cleonice, a quem os rapazes chamavam de “Toquinho de amarrar burro”, de tão baixinha que era, se casou. Para extravasar Melânia mergulhava na leitura de romances cheios de amor que ela jamais viveria, porque ela não queria um amor, queria um marido para não ficar sozinha. 
     No baile anual de primavera do Clube Social, Melânia conheceu Alfredo, ex-secretário da prefeitura, boa aparência, bigodinho bem aparado, terno xadrez, lencinho amarelo no bolso e chapéu panamá na cabeça. Durante toda a festa ele não tirou os olhos de Melânia. Foi o único que a tirou para dançar. Acontece que o belo moço tinha um defeito, era desquitado. Que horror! Desquite?! seria melhor ter contraído alguma praga. Uma pessoa bexiguenta era mais bem quista. Como eram terríveis aqueles tempos. Dona Carol fechou a cara, não pegava bem a filha dançando com homem “separado”. 
      Daquele dia em diante, Alfredo passou a cortejar Melânia em segredo. Jamais a mãe da moça permitiria o casamento dos dois, falar em namorar um homem como ele, era um despropósito, verdadeira afronta para a boa família e o bom nome. Melânia custou encontrar alguém que a queria e quando encontra todos ficam contra e tratam o caso como se fosse um despautério. Mais uma vez a vida de beata lhe tirava o sossego. No entanto, Alfredo tinha uma ideia que resolveria todos os problemas do casal. 

Cora Coralina: Todas as Vidas, filme de 2018.

     Na madrugada de uma sexta-feira, Melânia pulou a janela e atravessou a cidade ao lado de Alfredo.  Por uma noite cavalgaram ao som apenas do triste trotar dos cavalos ou o pio de algum pássaro distante. Na estação ferroviária da cidade mais próxima embarcaram no trem que levava para o Rio de Janeiro. Foram acolhidos por um tio de Alfredo, um banqueiro que deu emprego para o sobrinho e emprestou uma casa para o casal começar a vida do zero. Melânia tinha um carinho muito grande por Alfredo. Amor não, mas cuidado, compreensão, respeito, isso sim, ela tinha. Toda essa aventura que viveu era só para não acabar seus dias como mulher solteira. Ah! Como eram cruéis aqueles dias.

Ricardo Rodrigues

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