O Interrogatório

16:34 Ricardo Rodrigues 0 Comments


- Como foi?
- Pela vagina!
- Como assim pela vagina? Explique-se melhor!
- Foi isso que o senhor ouviu, doutor. Foi pela vagina.
- E isso não lhe causou danos?
- Danos? Acredite, ela já passou por coisas piores e sempre sobreviveu. Nada que água e sabão não resolvam.
- Você está arrependida?
- Não. Estaria arrependida se não tivesse feito.
- Não tem medo do que está por vir? A cadeia é um lugar inóspito e cheia de surpresas desagradáveis. Realmente não teme o seu futuro?
- Temo somente não poder trazer minha vitrola e o meu disco da Lesley Gore. No mais, estou sentido até um certo gosto de liberdade.
- Liberdade é tudo o que a senhora não terá a partir de agora.
- Desculpe-me doutor se rio, mas o senhor é muito inocente para um delegado. Acredita mesmo que liberdade se limita em estar presa ou solta? Isso é só uma parte dela. A melhor parte da liberdade está aqui dentro do peito, na leveza do corpo e dos sentimentos.
- Então este crime te fez sentir leve?
- Como um pássaro. Se tocasse uma música aqui agora eu dançaria sem parar.
- Mas para experimentar esta liberdade da qual fala, era necessário tanto?
- Era ele ou eu. Neste mundo já não havia mais espaço para nós dois. Ações extremas pedem reações extremas. Não sei se o senhor consegue me entender.
- Estou tentando! Ele te fazia se sentir ameaçada?
- Doutor, três vezes eu estive diante da morte. A última foi porque fugi e ele foi atrás. Aquele homem só podia ter pacto com o capeta. Conseguiu me achar. Não me matou porque uma amiga entrou no meio da confusão e me salvou. Mas todas as noites aquele bêbado imundo me batia, pegava uma faca e ameaçava cortar minha garganta. Fui humilhada, estuprada, espancada até o limite.
- Você poderia ter dado queixa.
- Acredito que as gavetas de sua delegacia estão repletas de boletins de ocorrência no meu nome.
- Então a senhora decidiu fazer justiça com as próprias mãos, acreditando estar no direito de tal ato?
- Eu deixei bem claro o que eu faria na minha última denúncia, que mais uma vez foi engavetada.
- E porque a senhora não fugiu depois do crime? Ao invés disso, dançou e cantou no enterro dele. A cena da senhora jogando bebida no esquife de seu marido nunca mais sairá da minha mente. É como se a senhora quisesse ser presa.
- O senhor chegou para me prender a tempo de testemunhar o desabafo de uma mulher que agora sim poderia dormir sem medo de não acordar no dia seguinte. Enfim, nunca tive pretensão de fugir. Sei o que fiz e estou disposta a pagar o preço.
- Você só não me contou ainda os detalhes do crime.
- Foi tudo muito simples. Ele adorava me fazer sexo oral. Só precisei passar um pouco de veneno na vagina e deixar ele lamber. O veneno agiu de forma rápida. Ele deveria agradecer por não sofrer e morrer com a cara enfiada num xibiu.
- Eu não sei se fico surpreso ou abismado com tamanha criatividade.
- Foram meses planejando.
- Dona Cibele, o resultado de tudo isso a senhora já sabe.  Está presa por premeditar e assassinar o marido de forma fria e calculista. Se não tem mais nada a acrescentar, eu irei encaminhá-la para uma cela.
- Só mais uma coisa.
- Diga!
- Me arruma um cigarro? Há horas que não dou uma tragada!

Ricardo Rodrigues

Este conto é o terceiro da série "Diálogos Absurdos" 


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