É Proibido Viver! (1ª Parte)

06:29 Ricardo Rodrigues 0 Comments


    Lúcio rodou com dificuldade a manivela do velho Trojan 1912, o sol estava escaldante, nunca havia feito tanto calor assim como naquele verão de 1932, os jornais diziam que era o verão mais quente da história do país. Os braços doeram e ele parou um instante para secar o suor que brotava da testa com um lencinho branco com barra de crochê e um grande L dourado bordado a mão por sua mãe. Depois de secar o rosto, chutou a roda do carro que ele desejava tanto trocar, afinal mesmo sendo a única coisa que o pai lhe deixara, era o único carro que ainda era a manivela ali da região. Ele até que ficava impressionado de como aquela lata velha mesmo depois de vinte anos ainda funcionasse. Lúcio suspirou e voltou a rodar a manivela com força até que o carro pegou e ele seguiu viagem. Este ritual foi repetido por ele mais seis vezes até chegar ao seu destino.

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    O Instituto Sagesse* era um internato de meninos e meninas que ficava distante da cidade. Fundado no final do século XIX por um francês que viera com a família para o Brasil trazendo consigo a sofisticação da educação europeia. A instituição recebia crianças de todo o país para aprenderem as disciplinas primárias e secundárias, além de francês, latim, inglês e etiqueta. O prédio do internato, um edifício de três andares cor de terra com grandes janelas, era cercado por pequenos morros verdes e campos forrados de flores silvestres. Seu muro amarelo protegia as crianças de possíveis animais selvagens e evitava a fuga daquelas mais travessas. No pátio além de alguns balanços, tinha um enorme jardim com vários canteiros abarrotados de coloridas flores que eram usadas em decorações das salas, quartos e refeitório do instituto. Existiam ali também, bancos de madeira posicionados propositalmente debaixo de algumas árvores para que as crianças deleitassem com conforto de suas sombras. Era um lugar tranquilo e seguro.

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    Lúcio não era uma pessoa feliz. Ele estava completamente morto por dentro. A incapacidade de administrar os sofrimentos e frustrações vividas aliadas a uma fraqueza de caráter havia feito com que ele alcançasse a mais profunda amargura, corrompendo qualquer possibilidade de se abrir para a felicidade e as belezas da vida. Muitos diriam que seria melhor morrer do que viver assim, no entanto Lúcio preferia viver e com um objetivo certo; já que não conseguiu ser feliz ninguém em sua volta jamais desfrutaria da felicidade. Ele próprio faria questão de garantir isso, espalhando sua amargura onde colocasse os pés. O triste em toda esta história é que Lúcio escondia a sua demência por trás do velho terno de casimira, que apesar de surrado ainda dava boa presença ao seu corpo alto, disfarçando a barriga estufada e redonda, além das pernas que se esqueceram de engordar e eram finas como dois palitos espetados em uma batata roliça. O sorriso falso naquele rosto de lua cheia, velava a maldade estampada nos olhos grandes e arregalados iguais aos de uma coruja pronta para abocanhar o rato, olhos esses, que duplicava de tamanho por trás dos óculos de armação quadrada usados para ajudar e a manter o disfarce de bom professor.
    Quando o pai, Adolfo, morreu, Lúcio como o novo homem da família aos dezessete anos teve que se virar com uma casa hipotecada e o velho carro do pai, para tentar alimentar a mãe reumática, Beatriz, e a irmã Luciana que era só um ano mais nova que ele. Com esforço terminou os estudos e virou professor, enquanto Luciana fugiu com um rapaz que lhe prometeu uma vida de rainha e no fim fez dela mulher da vida. Sem conseguir saldar as dívidas da casa, Lúcio e dona Beatriz foram despejados de forma desumana na rua da amargura. Desgostosa com o destino da filha e a perda da casa que viveu sua família, Dona Beatriz não resistiu e entregou-se a morte, afinal o coração da senhora já não aguentava mais tantas intempéries e simplesmente parou de bater. A Lúcio restara apenas o Trojan 1912, o lencinho branco bordado pela sua mãe e para aumentar a desgraça em sua vida ele descobriu que estava com diabetes.
    Depois desta tragédia, se ainda existisse algum resquício de humanidade no coração de Lúcio, fora evaporado como água no calor. Ele conseguiu dar algumas aulas e se manter em uma pensão. Criara para si uma imagem de professor sério e comprometido com a disciplina e a ordem, sempre demonstrando austeridade. Os alunos tinham tanto medo do professor, que as vezes aplicava castigos medievais, ao ponto de em suas aulas ser possível ouvir o barulho de uma agulha caindo no chão. E foi por passar uma falsa imagem de homem íntegro e comprometido que ele foi indicado como substituto da falecida diretora de um Instituto no interior do estado. O salário era bom e ele poderia fazer uma boa economia já que moraria no internato, garantindo sua alimentação e moradia. Com o dinheiro economizado compraria um carro novo e daria entrada em um apartamento na capital.

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    Dona Melânia foi diretora do Instituto Sagesse por mais de trinta anos. Uma senhora de coração puro, amava a profissão e as crianças. Sabia lidar com as travessuras e em seus métodos de educação sempre colocava amor e gestos de carinho. Era amada por todos os professores e alunos, devido ao seu olhar que trazia sempre o brilho da ternura e a boca era carregada de sorrisos, típicos de quem ama a vida. Ela deu ao internato o toque da beleza de seu coração, projetando o jardim e os demais espaços de convivência prazerosos.
    Fora dos muros da instituição existia uma velha azinheira de troncos retorcidos com a copa ampla e arredondada em seus dez metros de altura, proporcionando uma gostosa sombra nos dias quentes de verão. Embora esta árvore tivesse sido plantada anos antes da chegada de Dona Melânia, debaixo de suas sombras era o local preferido da diretora. Ela era encontrada ali nas horas livres lendo um bom livro sentada em uma cadeira de descanso trazida pelo zelador do instituto ou quando tinha alguma decisão séria a tomar, ela se encostava no tronco e punha-se a pensar. Seu amor pela azinheira era tão grande que quando a pobre diretora, já suspirando os últimos ares de vida, pediu que fosse levada até a árvore para se despedir. Sob as sombras da velha amiga e cercada pelos alunos e professores, Dona Melânia fechou os olhos e abraçou a morte com a sabedoria de quem soube viver bem a vida; com amizade e acolhida. Em meio aos prantos a azinheira também demonstrou sua tristeza e reciprocidade, ao deixar que o vento levasse todas as suas folhas, sobrando somente tronco e galhos. Nunca mais voltou a brotar uma só folha e ela ficou ali desfolhada e sem vida.

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    Três meses se passaram desde a morte da diretora, então o dono do instituto anunciou que o internato ganharia uma nova direção. A notícia da chegada do novo diretor deixou todos alvoraçados e esperançosos de que ele fosse tão bom quanto a falecida Dona Melânia. Lindalva, professora de música, ensaiou uma bela canção com as crianças, enquanto professora Maria, que ensinava gramática e literatura, junto a um grupo de alunos do último ano trabalharam na composição de poesias de boa vindas. O zelador, que era chamado carinhosamente por todos de Tonho, colheu as flores mais bonitas do jardim para que Luíza, a faxineira, fizesse um lindo buquê para ser entregue. As cozinheiras fizeram diversos doces, quitutes, bolos e salgados para festejarem, enquanto os demais professores decoraram o pátio. Tudo estava pronto e organizado para receber com pompas o novo diretor.
    Quando Lúcio entrou no pátio do Instituto Sagesse se deparou com os alunos bem alinhados e uniformizados junto a seus professores, música, flores e alegria. Ali poderia ter sido o a sua abolição de todo peso causado por tanta amargura acolhendo aquele gesto carinhoso com o coração aberto. No entanto Lúcio ergueu a sobrancelha direita e olhou a tudo com reprovação, como se todos ali estivessem contaminados por uma doença contagiosa. Depois pediu que parassem com a música a tempo de ouvir Aurélinho, um dos alunos do primário dizer:
    - Virgem Santa! Ele tem um papo enorme igual a um pelicano!
    - Aurélio! - repreendeu a professora Maria, ficando vermelha constatando que pequeno tinha razão, embora aquilo fosse uma falta de educação - Não fale assim do diretor. Sabes muito bem que não se faz comentários maldosos com a aparência física das pessoas.
    Lúcio, ainda com a sobrancelha direita erguida, abriu ainda mais os olhos e deu um sorrisinho maldoso de canto de boca. Caminhou até a lixeira mais próxima em silêncio e jogou o buquê dentro do cesto, esfregou as mãos uma na outra como se estivesse limpando-as. Depois andou até o centro do pátio e cruzou os braços na altura do peito apoiando-os na barriga redonda.
    - As coisas no Instituto Sagesse estão completamente diferente do que me foi falado. - disse sem alterar a voz - Será que alguém pode me explicar que brincadeira de mal gosto é esta? Fizeram da instituição um verdadeiro pandemônio. Eu pensei que chegaria aqui e encontraria ordem e respeito, mas o que eu vejo são alunos malcriados e professores que se acharam no direito de transformar um lugar sério em baile de carnaval.
    "Devo tomar uma atitude imediatamente como novo diretor. Alunos e professores, escutem com atenção. Eu sou reconhecido pela ordem e pela moral e acredito que toda criatura humana deve ser educada dentro destes princípios. Noto que este instituto necessita de uma ação imediata, antes que as coisas fujam do controle. A partir de hoje os professores serão devidamente cobrados por resultados satisfatórios dentro das novas regras que eu elaborarei. Aquele que descumprir, será impiedosamente demitido. Quanto aos alunos, castigos exemplares serão aplicados de acordo com as penalidades cometidas."
    Lúcio caminhou até a mesa onde estava toda a comida preparada para a fracassada festividade de boas vindas, pegou um figo cristalizado e mordeu um pedaço, cuspindo-o em seguida aos pés da cozinheira.
    - EU SOU DIABÉTICO! - gritou o diretor - Se eu não posso comer doces, em consideração a MIM, ninguém mais comerá doces aqui. Pegue toda esta comida e jogue para os porcos.
    - Mas senhor diretor... - disse a cozinheira tentando argumentar.
    - Cale-se! - retrucou Lúcio - Faça o que estou mandando ou pegue as suas coisas e coloque-se para fora desta instituição.
    A cozinheira abaixou a cabeça e temerosa de perder o emprego começou a recolher a comida da mesa. Lúcio andou novamente para o centro do pátio e voltou a falar.
    - Venha até aqui garoto. - chamou  ele apontando para Aurélio, que olhou para o chão e sem desviar os olhos dos pés, caminhou até o diretor - Assim que cheguei aqui este aluno fez uma pilhéria dizendo que eu tenho um papo semelhante a um pelicano. Um chiste grave que não posso deixar passar sem punição. - dirigindo-se ao zelador, Lúcio continuo falando - Tonho, vá buscar uma corda. - Tonho ficou imóvel - O senhor por algum acaso está surdo, zelador? Quer que eu te mande embora daqui para que limpe seus ouvidos bem longe?
    Tonho, a passos lentos, saiu e voltou com uma corda bem segura em uma das mãos e entregou ao diretor. Os professores e alunos olhavam para o pequeno Aurélio e para Lúcio sem sequer piscarem os olhos. O medo estava estampado na face de todos. "O que ele irá fazer com esta corda?" questionavam alguns em pensamento. "Será que ele terá a ousadia de bater em Aurélio?" pensavam outros.
    - Para provar que minha palavra é lei, - explicou Lúcio - e para que sirva de lição a todos que vierem tentar burlar as regras do Instituto Sagesse, este aluno será castigado da seguinte forma: o zelador irá amarrar esta corda nos pés do jovenzinho aqui e irá pendurá-lo de cabeça para baixo naquela árvore. - anunciou apontando para uma árvore no jardim - Ele ficará ali até que  aprenda a controlar a língua.
    - O SENHOR ESTÁ LOUCO! - gritou a professora Maria correndo até Aurélio e abraçando o aluno, compadecida e a assustada - Isso é medieval, irei dar queixas do senhor ao dono do instituto! - os olhos castanhos da professora já não conseguiam segurar as lágrimas.
    - A SENHORITA ESTÁ ME DESAFIANDO? - gritou o diretor de volta batendo a mão direita no peito - EU ENTENDI ERRADO OU A PROFESSORA ESTÁ CRITICANDO OS MEUS MÉTODOS EFICAZES DE EDUCAÇÃO?
    - SÓ OS SEUS ATOS DE DESUMANIDADE! - gritou Maria ainda mais forte - É INADMISSÍVEL O QUE O SENHOR QUER FAZER ALÉM DE SER MONSTRUOSO E CRUEL.
    - Tonho! - chamou o diretor - Faça o que eu mandei. - Lúcio olhou desafiadoramente para Maria e concluiu - Pendure o garoto.
    Maria tentou impedir, porém Lúcio a segurou. Com lágrimas nos olhos e com as mãos trêmulas, Tonho tentava amarrar a corda nos pés de Aurélio que chorava copiosamente. Vendo que o zelador não estava conseguindo laçar a corda, Lúcio empurrou Maria e ele mesmo amarrou os pés do garoto e o pendurou na árvore como se fosse um enfeite de Natal, só que de cabeça para baixo. O diretor sorria enquanto todos os outros que presenciavam  cena de maldade choravam. Aurélio fico dependurado três minutos, embora ele tivesse a sensação de que passou horas.  O próprio diretor foi até a árvore e desamarrou o garoto que foi amparado imediatamente pela professora Maria.
    - Isso é tudo! - disse o diretor - Voltem todos para os seus afazeres. Menos a senhorita Maria. - falou com os olhos de coruja fixos na professora - No Instituto Sagesse você não leciona mais. Está demitida. - e com um sorriso carregado de maldade e gozo determinou - A senhorita tem três horas, a partir deste instante, para pegar suas coisas e sair daqui. Quando completar este tempo eu não quero nem sentir o seu perfume aqui neste lugar.

Continua...

Ricardo Rodrigues


"Este conto é uma história de ficção embora seja inspirado em uma pessoa real. Claro que quem me inspirou a escrever esta história não pendurava ninguém de ponta cabeça em árvores, porém o original conseguia ser deploravelmente pior."


* Sagesse: É uma palavra francesa que traduzida para o português literalmente significa "Sabedoria".

Ilustração: Imagem da Internet

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