Catarina e as Cores de São Luís

14:33 Ricardo Rodrigues 3 Comments


       São Luís do Maranhão, Ilha do Amor, capital dos poetas, terra desbravada entre o calor tropical e a quentura humana. História gravada nos azulejos dos grandes casarões antigos, nas escadarias de pedras, becos e largos, que muito viu e ouviu, entre o barulho dos cascos de cavalos e o chiado irritante de carruagens como a da ferrenha Ana Jansen. Terra quente onde o sangue ferve e as cores explodem em amores, músicas e lendas. Foi no beco Catarina Mina, no meio da escadaria de pedra lioz que a vendedora de tapioca Jacinta Tomásia, mulher de gênio forte e sem papas na língua, sentiu as dores de parto e sem muito socorro debaixo do sol forte, deu a luz a uma menina que nos olhos traziam a cor pura do mel e na pele a tonalidade fresca da canela. Pobre Jacinta não teve nem mesmo tempo de olhar para pequena que trazia ao mundo e lhe colocar a benção e o nome, foi sua comadre Josefa quem fez o parto e viu a amiga e companheira de vendas dar vida a uma pobre criatura e abraçar a morte logo em seguida, ali mesmo sobre a pedra quente.
     Jacinta não tinha parentes e nunca contou a ninguém quem havia lhe engravidado, embora Josefa soubesse que ela negra faceira de beleza natural, andava se enrabichando com um velho Coronel, chamado José Brandão, que já havia aposentado a patente e para agravar mais a situação era casado e Josefa não tinha a certeza se realmente ele era o pai daquela menina. Segurando o bebê no colo, enquanto a polícia e a equipe do IML retiravam o corpo da pobre Jacinta Tomásia do beco, Josefa pensou em entregar a criança as autoridades para ser encaminhada ao juizado e em seguida algum orfanato. No entanto ela se lembrou dos favores e amizade de anos que Jacinta lhe dedicava, então decidiu criar a recém-nascida. Ela a levou para sua pequena casa que ficava próxima a Igreja de Santo Antônio, registrou e batizou a menina por Catarina, nome do beco em que ela respirou os primeiros ares da vida. E foi assim que Catarina cresceu, entre os becos e escadarias de São Luís, aprendendo o trabalho de vendedora com Josefa, a qual ela aprendeu a chamar de tia, até a morte de sua tutora quando ela já contava vinte anos, assumindo de vez o ofício de vender a melhor tapioca da Ilha para os turistas.

     A vida cobrou caro de Catarina, nunca facilitou nada, mas se uma coisa que ela havia aprendido era que a palavra "desistir" não havia sido escrita para defini-la, muito pelo contrário. Ela tornara-se uma mulher de beleza natural igual a mãe e embora os olhos  cor de mel trouxessem um ar triste, ela não se deixava abater. Aprendera a aproveitar a vida e desfrutar das cores de São Luís, onde ela poderia ser o que quisesse. Sabia ser índia e se entregava atrevida as danças do Bumba Meu Boi, honrando com maestria a tradição do Boi da Maioba. Toda semana encontrava as companheiras e ao som do batuque dançava o Tambor de Crioula, recebia as bençãos dos orixás pelas mãos do Pai de Santo da Casa Fanti Ashanti e não faltava ao 08 de dezembro onde acendia sua vela a Senhora da Conceição e fazia procissão até o Santuário do Monte Castelo. Aos domingos a tarde depois de vender toda a tapioca, ela caminhava até o beco Catarina Mina e sentava na escada sob as sombras dos casarões e desabafava o que sentia na certeza de que sua mãe Jacinta a ouvia. Depois ela voltava para casa, tomava banho, borrifava detrás da orelha um pouco de perfume cítrico e amarrava um lenço vermelho no cabelo que não escondia a descendência afro. Com a melhor roupa ela terminava o domingo em um arrasta-pé próximo ao largo do Desterro.  Foi neste arrasta-pé que ela conheceu Teodorico, um jovem moreno de olhos verdes, que vivia na malandragem e na bebedeira rotineira nos bares do largo do Carmo.
     Tonha, amiga de festa de Catarina ainda alertou a amiga, "Menina vai com calma, Teodorico não vale o chão que dança, tu vai se meter em problemas." Mas o coração de Catarina já pertencia aquele cafajeste. E debaixo da lua cheia, em uma madrugada quente, depois de mergulharem juntos no mar, ela deixou Teodorico mergulhar na sua pele de canela, sem pudores e sem medo de amar, com o luar, as estrelas e a areia da praia por testemunha. Catarina era mulher e deixava-se dominar por aqueles olhos verdes intrigantes que arrebatara sua virgindade, sua beleza, seu suor e acima de tudo soubera roubar seu coração no ritual dos prazeres onde a carne e o deixar-se ser humano valia mais do que qualquer divindade. E apesar dos defeitos, Teodorico foi o homem que sempre soubera tratar Catarina como rainha. Mesmo diante de tantas malandragens, ou quando ela tinha que buscá-lo no bar tão bêbado que não a via levá-lo para casa. Nem mesmo quando ela o flagrava jogando seu charme para alguma mulher na rua estragava essa paixão forte e intensa como tudo em São Luís, pois Teodorico sempre contornava a situação e a briga dos dois acabava em beijos quentes.
     Acontece que toda malandragem tem seu limite, e em uma tarde de sábado uma garotinha de pés descalços desbravou as ruas de pedra do centro da cidade a procura de Catarina, aos gritos. "Dona Catarina, venha comigo rápido até o Largo do Carmo." Gritou a garotinha ao encontrar a vendedora de Tapioca. "O que aconteceu menina? É Teodorico com a cara cheia de novo? Pois que fique lá jogado." Respondeu ela, como sempre respondia, com as mãos na cintura, antes de amolecer o coração e ir em socorro até o amado. "Pior mulher, pior, venha ver com seus próprios olhos." Respondeu a menina correndo na direção do Largo do Carmo. Catarina a seguiu esforçando-se para conseguir acompanhar os passos rápidos da garotinha.
     Ao chegar no largo, ela viu uma multidão cercando a entrada da escadaria da Igreja do Carmo, seu coração parou. As pessoas que conheciam Catarina abriram um caminho em forma de corredor, e os olhos curiosos contemplaram os lábios carnudos e vermelhos dela tremerem e uma lágrima escorrer lentamente pelo rosto ao ver caído na escada o corpo do amado, a camisa que outrora fora branca, desta vez estava vermelha devido ao sangue que saia do peito de Teodorico e escorria pelos degraus da Igreja. "Teodorico" foi o grito que rompeu de sua garganta. Catarina correu até o amado e abraçou seu corpo sentindo o sangue que ainda vertia do peito sem vida. "Por que homem? por quê?" E nessa cena de cortar o coração ela chorava feito menina. "Ele mexeu com Dorinha, esposa do Marcão. O homem ficou cego de ciúmes e partiu para cima de Teodorico, a senhora sabe como Marcão é forte, seu marido tentou correr para dentro da igreja e se esconder, mas o homem sacou a arma e deu dois tiros certeiros. Teodorico gritou seu nome e caiu aqui na escada. Penso que quando o corpo dele bateu nessas pedras, ele já não pertencia mais a este mundo de vivos" Explicou Neco, dono do bar.


     Depois do enterro Catarina voltou para casa e durante meses, antes de dormir pegava uma camisa de Teodorico, cheirava, depois abraçava e chorava até adormecer. Outras vezes pegava a garrafa de cachaça que ele mantinha em casa para abrir o apetite, depois ligava o som e colocava o disco para tocar a música "Meu primeiro amor" na voz de Maria Bethânia, em seguida colocava uma dose regrada da pinga no copo e bebia, então voltava para garrafa e olhava com devoção, era o pedaço do Teodorico que ficara. Então Catrina abraçava a garrafa e dançava aquela música que era só dos dois. Quando amanhecia ela pegava suas coisas para montar a banca de tapioca. No percurso ela sempre procurava evitar as escadas, ela havia aprendido a odiá-las, pois foi em degraus que ela perdeu a mãe e o homem que fez dela mulher. 
     O tempo foi passando e Catarina, foi se recuperando e o coração acostumando a ficar sem Teodorico. Ela voltou a carregar as cores que estavam adormecidas. Ela só não conseguia voltar mais ao arrasta-pé. Agora suas tardes de domingo eram passadas na janela, como uma boneca namoradeira a espera do amado. Acontece que na vida quando um amor se vai, abre-se as portas para que um novo chegue. E foi nos braços de um turista que viera de mudança para São Luís que Catarina encontrou-se com o recomeço. Ele se apaixonou primeiramente pela tapioca com camarão e depois pela vendedora. Catarina agarrou essa chance que a felicidade lhe dava e ao lado do seu turista paulistano foi ser feliz. A ela, ele apresentou o conforto e vida de luxo que até então Catarina não conhecia. A ele, ela apresentou as cores de São Luís. E meu amigo, quem conhece as cores de São Luís fica eternamente apaixonado.


Ricardo Rodrigues


Músicas que inspiraram esta história:
*Senhor Cidadão - Tom Zé
*Jardim dos Animais - Fagner
*Réquiem para Madraga - Geraldo Vandré
*Meu Primeiro Amor - Maria Bethânia

Fotos: MA10 Sempre Notícias e Secretaria do Turismo do Maranhão

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