A Oração de Geni

08:23 Ricardo Rodrigues 0 Comments



"Joga pedra na Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni!"

- Pai, afasta de mim este cálice da dor de ser quem eu escolhi e não o que queriam impor para mim. Pai tu conheces a minha vida pregressa. Muito mais que meus desejos da carne pulsante e intempestiva, conheces o meu coração. Fui o que fui, não me arrependo, fui muito mais que minhas escolhas, fui o verdadeiro fruto do barro do qual minha espécie foi feita.

"Joga pedra na Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni!"

- Pai, andei pelos mangues e becos, no cais do porto. Dentro de garagens e cantinas, tanques, matos e até monturos. Por ali estava meu corpo exposto para os prazeres que consomem a carne que um dia alimentará os vermes em rápida putrefação. Carne que serviu miseráveis errantes, cegos, retirantes, viúvas, detentos, moleques, velhos sem saúde e todo aquele sem tostões furados. Para eles eu dei um pouco de prazer, um pouco de riso, um pouco de gozo, neste vale da sombra da morte que é a vida.

"Joga pedra na Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni!"

- Cristo, sou a Madalena da modernidade, embora pouco nobre, em meu corpo houve salvação e redenção. Nos tempos da maldade... Na verdade o tempo da maldade nunca passou. Mas não deixei que afetasse minha bondade, a nobreza do meu coração. Naquela tarde em que um zepelim gigante apontou os seus canhões para cidade. Seu comandante, que cheirava a brilho e cobre, figura que me dava asco toda a sua nobreza, estava decidido a tudo explodir, a menos que comungasse do meu corpo.

"Joga pedra na Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni!"

- Mesmo com essa intensa dor que sinto agora, consigo me recordar bem dos olhos vermelhos do vigilante bispo, da maleta de dólares do banqueiro, os suplicantes pedidos do prefeito, que de joelhos implorava. Aliás, todos imploravam. Era o medo da guerra, o medo da morte alimentando os desesperos de cada desafortunado daquela cidade que gritava:

"Vai com ele, vai Geni! Vai com ele, vai Geni! Você pode nos salvar! Você vai nos redimir! Você dá pra qualquer um! Bendita Geni!"

- Como não me compadecer? Vós, ó Cristo, compadecestes do ladrão, da puta, do traidor e até mesmo de seus algozes. Oferecestes o teu corpo para o bem do mundo, também eu ofereci o meu para o bem daquele lugar. O comandante lambuzou-se a noite inteira. Desfrutou até da mais miúda parte do meu corpo. Saciado, partiu como chegou, desaparecendo por trás das frias nuvens de outono. Suspirei e pensei em voltar para minha vidinha de sempre, agora com o respeito e o carinho daqueles que salvei. No entanto, eles queriam muito mais que a oferenda do meu corpo, eles desejavam a carne exposta e o sangue escarlate escorrendo pela calçada. Nem bem amanheceu e a romaria tomou minha porta em cantoria:

"Joga pedra na Geni! Joga bosta na Geni! ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni!"

- Pai, perdoai-lhes! Eles não sabem o que fazem! 

"Joga pedra na Geni! Joga bosta na Geni! ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni!"

- Senhor, em tuas mãos, eu, Geni, travesti, profanada, prostituída, querendo ser amada, entrego o meu espírito.

Ricardo Rodrigues

Este conto é o quarto da série"Diálogos Absurdos"
História inspirada, baseada e com trechos da canção "Geni e o Zeppelim" de Chico Buarque composta em 1978
Imagem:  Cena do Clip Your Arms de Barbara Ohana


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