Uma Flor Que Cai
Alexia olhou para a xícara cheia de café fumegante sobre a mesa. Acompanhou com os olhos a dança da fina fumaça que a bebida quente liberava. As pernas trêmulas, os olhos marejados. Ela queria beber o café, mas o corpo não obedecia os comandos de seu cérebro. O desejo do corpo não se harmonizava com o estado de sua embaralhada mente.
A primeira lágrima desceu tímida, desenhando um caminho na bochecha, borrando a maquiagem. Então veio a dor. Aquilo era novo para ela. Não era como cortar o dedo ou a enxaqueca que se habituara. Nunca havia sentido aquilo. Enquanto o coração parecia receber pequenas ferroadas causadas por mais de mil agulhas ao mesmo tempo, o pulmão contraía dificultando a respiração. No chão um porta retrato quebrado e uma foto rasgada.
De repente o tremor das pernas se espalhou pelo corpo todo. Ela sentia calor e frio ao mesmo tempo. Seus olhos se mantiveram fixos na xícara. O café foi esfriando e a fina fumaça dissipou em um bailado derradeiro. Alexia não se moveu. Passaram-se horas e horas e ela ali com sua dor nupérrima, até que vencida pelo cansaço adormeceu naquela cadeira em que esteve sentada o tempo todo olhando para o que desejava beber e não conseguia.
O sol lançava seus primeiros raios pela janela quando Alexia acordou. O pescoço doía pelo mal jeito no qual passou a noite. Embora sentisse a mesma agonia que na noite passada, ela conseguiu levantar da cadeira. Pegou a xícara e tocou com a ponta do dedo indicador o café frio. Esforçou um sorriso e levantou com a chávena na mão com o intuito de despejar fora a bebida na pia da cozinha. Sem olhar para o chão pisou sem querer no retrato rasgado. "Meu Deus!" exclamou antes de soltar a xícara que caiu como um relâmpago pela força da física e lentamente pelo registro dos olhos de Alexia que fotografou aquele momento em que a porcelana estourava no chão lançando pedaços em todas as direções. Ela não ficou preocupada em limpar a sujeira de cacos e café respingado por toda parte. Como se estivesse dominada por uma entidade mais forte do que ela mesma, caminhou como um zumbi até o quarto e automaticamente tirou um vestido de várias camadas sobrepostas de chiffon vermelho. Vestiu com cuidado, depois sentou diante da penteadeira e limpou o rosto com um lenço umedecido. Refez a maquiagem e finalizou com um batom da mesma cor que a roupa. Sorriu para a própria imagem no espelho e em seguida dançou pelo quarto uma música que só existia na sua cabeça. Só parou quando Maria, a diarista que vinha uma vez por semana a interrompeu.
- Dona Alexia! - Chamou Maria fazendo a patroa voltar a realidade. - Bom dia! Tudo bem com a senhora?
- Oi Maria! - Alexia retribuiu a cortesia um pouco assustada, não lembrava que era o dia da diarista vir dar faxina. Antes que Maria percebesse ela disfarçou o susto e o mal estar que sentia. - Comigo tudo ótimo e com você?
- Mais ou menos. - respondeu Maria. - O elevador de serviço está quebrado de novo. Minha Nossa Senhora! - Começou a reclamar suspirando enquanto falava. - O Aroldo, aquele porteiro imprestável, disse que só vai consertar semana que vem. A senhora vai ter que me dar um extra hoje, o apartamento está uma zona e eu ainda tive que subir doze andares de escadas.
Alexia ouviu mas não prestou atenção em nada.
- Maria vai me buscar um cigarro. Acho que o maço está no aparador da sala.
Maria bufou revoltada com a patroa que não lhe deu atenção, no entanto, se pôs a cumprir a ordem e foi buscar o cigarro. Alexia caminhou até a sacada do quarto e deixou o sol iluminar seu rosto. A funcionária chegou com o tabaco e ficou olhando para Alexia. "Ela está esquisita hoje. Que bicho lhe mordeu?" pensou a diarista. Sem dizer uma palavra ela tomou o cigarro da mão de Maria e colocou na boca mas não acendeu.
- Ele não vem mais Maria. Desta vez foi para sempre. Não deixou nada. Nem ao menos uma cueca como desculpa para voltar depois. - Disse Alexia movimentando a boca com cuidado para não deixar cair o cigarro. - Gostou do meu vestido Maria? - perguntou ela, antes que Maria começasse a questionar como se deu a partida dele. - Ele é todo em camadas.
- É bonito! - Respondeu Maria, prestando mais atenção na atitude de sua senhora do que no vestido.
- Nós também somos feitos de camadas. Tal qual este vestido aqui. Só que as nossas camadas são construídas pela dor. - Falou nem sem olhar para a funcionária, como se estivesse conversando consigo mesma.
Antes que Maria pudesse fazer qualquer movimento, Alexia subiu na balaustrada e se jogou daquele décimo segundo andar. Sua queda foi tão breve quanto a xícara que quebrou mais cedo, no entanto ao invés de lembrar um receptáculo de porcelana, o vestido a fez parecer uma flor caindo, com suas pétalas balançando ao vento até explodir completamente despetalada no chão.
Ricardo Rodrigues
Adorei. Quando comecei a ler já fiquei preso. Parabéns!!!
ResponderExcluirObrigado! Seja muito bem-vindo e sinta-se a vontade a se prender nas outras histórias aqui do blog. Fico muito feliz pelo carinho.
ExcluirTop, mas não queria que ela tivesse se esborrachado no chão. KKK parabéns
ResponderExcluirObrigado! As trágicas escolhas da vida! Volte sempre...
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