Uma Flor Que Cai

10:10 Ricardo Rodrigues 4 Comments

     

     Alexia olhou para a xícara cheia de café fumegante sobre a mesa. Acompanhou com os olhos a dança da fina fumaça que a bebida quente liberava. As pernas trêmulas, os olhos marejados. Ela queria beber o café, mas o corpo não obedecia os comandos de seu cérebro. O desejo do corpo não se harmonizava com o estado de sua embaralhada mente.
     A primeira lágrima desceu tímida, desenhando um caminho na bochecha, borrando a maquiagem. Então veio a dor. Aquilo era novo para ela. Não era como cortar o dedo ou a enxaqueca que se habituara. Nunca havia sentido aquilo. Enquanto o coração parecia receber pequenas ferroadas causadas por mais de mil agulhas ao mesmo tempo, o pulmão contraía dificultando a respiração. No chão um porta retrato quebrado e uma foto rasgada.
     De repente o tremor das pernas se espalhou pelo corpo todo. Ela sentia calor e frio ao mesmo tempo. Seus olhos se mantiveram fixos na xícara. O café foi esfriando e a fina fumaça dissipou em um bailado derradeiro. Alexia não se moveu. Passaram-se horas e horas e ela ali com sua dor nupérrima, até que vencida pelo cansaço adormeceu naquela cadeira em que esteve sentada o tempo todo olhando para o que desejava beber e não conseguia.

     O sol lançava seus primeiros raios pela janela quando Alexia acordou. O pescoço doía pelo mal jeito no qual passou a noite. Embora sentisse a mesma agonia que na noite passada, ela conseguiu levantar da cadeira. Pegou a xícara e tocou com a ponta do dedo indicador o café frio. Esforçou um sorriso e levantou com a chávena na mão com o intuito de despejar fora a bebida na pia da cozinha. Sem olhar para o chão pisou sem querer no retrato rasgado. "Meu Deus!" exclamou antes de soltar a xícara que caiu como um relâmpago pela força da física e lentamente pelo registro dos olhos de Alexia que fotografou aquele momento em que a porcelana estourava no chão lançando pedaços em todas as direções. Ela não ficou preocupada em limpar a sujeira de cacos e café respingado por toda parte. Como se estivesse dominada por uma entidade mais forte do que ela mesma, caminhou como um zumbi até o quarto e automaticamente tirou um vestido de várias camadas sobrepostas de chiffon vermelho. Vestiu com cuidado, depois sentou diante da penteadeira e limpou o rosto com um lenço umedecido. Refez a maquiagem e finalizou com um batom da mesma cor que a roupa. Sorriu para a própria imagem no espelho e em seguida dançou pelo quarto uma música que só existia na sua cabeça. Só parou quando Maria, a diarista que vinha uma vez por semana a interrompeu.
     - Dona Alexia! - Chamou Maria fazendo a patroa voltar a realidade. - Bom dia! Tudo bem com a senhora?
    - Oi Maria! - Alexia retribuiu a cortesia um pouco assustada, não lembrava que era o dia da diarista vir dar faxina. Antes que Maria percebesse ela disfarçou o susto e o mal estar que sentia. - Comigo tudo ótimo e com você?
     - Mais ou menos. - respondeu Maria. - O elevador de serviço está quebrado de novo. Minha Nossa Senhora! - Começou a reclamar suspirando enquanto falava. - O Aroldo, aquele porteiro imprestável, disse que só vai consertar semana que vem. A senhora vai ter que me dar um extra hoje, o apartamento está uma zona e eu ainda tive que subir doze andares de escadas.
     Alexia ouviu mas não prestou atenção em nada.
     - Maria vai me buscar um cigarro. Acho que o maço está no aparador da sala.
     Maria bufou revoltada com a patroa que não lhe deu atenção, no entanto, se pôs a cumprir a ordem e foi buscar o cigarro. Alexia caminhou até a sacada do quarto e deixou o sol iluminar seu rosto. A funcionária chegou com o tabaco e ficou olhando para Alexia. "Ela está esquisita hoje. Que bicho lhe mordeu?" pensou a diarista. Sem dizer uma palavra ela tomou o cigarro da mão de Maria e colocou na boca mas não acendeu.
     - Ele não vem mais Maria. Desta vez foi para sempre. Não deixou nada. Nem ao menos uma cueca como desculpa para voltar depois. - Disse Alexia movimentando a boca com cuidado para não deixar cair o cigarro. - Gostou do meu vestido Maria? - perguntou ela, antes que Maria começasse a questionar como se deu a partida dele.  - Ele é todo em camadas.
    - É bonito! - Respondeu Maria, prestando mais atenção na atitude de sua senhora do que no vestido.
     - Nós também somos feitos de camadas. Tal qual este vestido aqui. Só que as nossas camadas são construídas pela dor. - Falou nem sem olhar para a funcionária, como se estivesse conversando consigo mesma.
     Antes que Maria pudesse fazer qualquer movimento, Alexia subiu na balaustrada e se jogou daquele décimo segundo andar. Sua queda foi tão breve quanto a xícara que quebrou mais cedo, no entanto ao invés de lembrar um receptáculo de porcelana, o vestido a fez parecer uma flor caindo, com suas pétalas balançando ao vento até explodir completamente despetalada no chão.

Ricardo Rodrigues

4 comentários:

  1. Adorei. Quando comecei a ler já fiquei preso. Parabéns!!!

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    1. Obrigado! Seja muito bem-vindo e sinta-se a vontade a se prender nas outras histórias aqui do blog. Fico muito feliz pelo carinho.

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  2. Top, mas não queria que ela tivesse se esborrachado no chão. KKK parabéns

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