Efúgio


      
Para Cora Coralina que em uma madrugada fugiu da Cidade de Goiás com Cantídio

     Melânia nunca amou de verdade nenhum homem em toda a sua vida. Isso não significa que ela nunca soube apreciar as nuances e belezas do que seria o amor. Ela amou os livros, a poesia, a música boa de seu tempo, o cheiro de café quente e do bolo fofo saído do forno, o crepúsculo e os sete filhos. Abelardo, o mais velho, responsável, olhos da mãe, cabelos do pai. Roberto, segundo filho, introvertido, cheio de sardas. Gioconda, primeira filha mulher, terceira parição, maliciosa com ares de feminismo. Brenda, segunda filha mulher, mandona e implicante. Francisco, endiabrado, sempre de estilingue na mão, terror dos pássaros e das janelas da vizinhança. Pedro e Paulo, os caçulas, gêmeos, vestimentas iguais, personalidades diferentes. Pedro, efeminado e pirracento, Paulo carente e manhoso. 
      Melânia, nos tempos em que desfrutava a mocidade, não se achava bonita. Bela e cheia de graça era Rosa, sua irmã mais velha. Esbelta, olhos castanhos, pele lavada e perfumada com leite de rosas. Ela arrumou um bom casamento, com o filho do prefeito, futuro deputado estadual. Diferente de Melânia, a moça de cabelo ressecado, sardas, quadril largo. Corria o risco de virar solteirona, beata de porta de igreja com o rosário sempre nas mãos, e isso ela não queria de forma alguma. 
     – Moça feia ou malcuidada não casa. – Dizia sua mãe, Dona Carol, esposa venerada do Capitão Simão. – Lave a cara, penteia o cabelo e ande sempre arrumada. 
     E mesmo seguindo à risca os conselhos experientes da mãe, Melânia não desencalhava, e moça desesperada para casar era um perigo. Acabava se iludindo e não arrumava bom partido, além de ficar falada. Tempos difíceis para mulher eram aqueles de brutas eras de homens e de joguetes femininos em masculinas mãos. 
      Os anos passaram e os ares de mocidade começaram a passar também. Nada de Melânia arranjar casamento. O medo da beatice estava cada vez mais estampado na face triste e desesperançosa da manceba. O desespero e o mau humor eram evidenciados em seu comportamento diante das cobranças sociais. Rosa, sua irmã, casou, Beatriz, sua melhor amiga, também se casou e até Cleonice, a quem os rapazes chamavam de “Toquinho de amarrar burro”, de tão baixinha que era, se casou. Para extravasar Melânia mergulhava na leitura de romances cheios de amor que ela jamais viveria, porque ela não queria um amor, queria um marido para não ficar sozinha. 
     No baile anual de primavera do Clube Social, Melânia conheceu Alfredo, ex-secretário da prefeitura, boa aparência, bigodinho bem aparado, terno xadrez, lencinho amarelo no bolso e chapéu panamá na cabeça. Durante toda a festa ele não tirou os olhos de Melânia. Foi o único que a tirou para dançar. Acontece que o belo moço tinha um defeito, era desquitado. Que horror! Desquite?! seria melhor ter contraído alguma praga. Uma pessoa bexiguenta era mais bem quista. Como eram terríveis aqueles tempos. Dona Carol fechou a cara, não pegava bem a filha dançando com homem “separado”. 
      Daquele dia em diante, Alfredo passou a cortejar Melânia em segredo. Jamais a mãe da moça permitiria o casamento dos dois, falar em namorar um homem como ele, era um despropósito, verdadeira afronta para a boa família e o bom nome. Melânia custou encontrar alguém que a queria e quando encontra todos ficam contra e tratam o caso como se fosse um despautério. Mais uma vez a vida de beata lhe tirava o sossego. No entanto, Alfredo tinha uma ideia que resolveria todos os problemas do casal. 

Cora Coralina: Todas as Vidas, filme de 2018.

     Na madrugada de uma sexta-feira, Melânia pulou a janela e atravessou a cidade ao lado de Alfredo.  Por uma noite cavalgaram ao som apenas do triste trotar dos cavalos ou o pio de algum pássaro distante. Na estação ferroviária da cidade mais próxima embarcaram no trem que levava para o Rio de Janeiro. Foram acolhidos por um tio de Alfredo, um banqueiro que deu emprego para o sobrinho e emprestou uma casa para o casal começar a vida do zero. Melânia tinha um carinho muito grande por Alfredo. Amor não, mas cuidado, compreensão, respeito, isso sim, ela tinha. Toda essa aventura que viveu era só para não acabar seus dias como mulher solteira. Ah! Como eram cruéis aqueles dias.

Ricardo Rodrigues

Vadiagem


     

     
     A menina na janela, Luzia é o nome dela, usa vestido de chita e flor de café na orelha. É inocente, é pura e espera com os braços postos no umbral um sorriso meu. Eu, vadio que sou, não quero entregar-me as derivações da paixão, olho de relance seus cabelos castanhos besuntados com óleo de coco que brilham ao serem tocados pelos últimos raios de sol da tarde. Abaixo a cabeça e sorrio torto, dou-me o direito de corar um pouco, evitando o olhar que alimenta a ilusão de minha perfeição.
      “Seu moço, eu não sou perfeito!” Digo a um companheiro de cachaça, sentado em uma mesa perdida na calçada de um bar. "Luzia é moça de prenda, menina para casar e chamar de dengo. Mulher como ela não se faz mais". O amigo defende os bons dotes da virgem. "Case tu com ela. Eu não nasci para ser homem de uma mulher só". Replico, enquanto bebo uma boa dose de caninha brava.
     Não sou cavaleiro ou príncipe que alguma donzela possa amar. Embora, eu saiba do delicado amor de Luzia por mim, eu não quero alimentar ilusões afim. Sou vadio, sou homem do mundo, mudo de rua e troco o caminho. Malandro da vida não merece moça bonita, prendada e apaixonada que vive de suspiros.
      Ele merece mulher vivida, dos salões do bordel da Tia Joana, que na vida soube ser as mais diversas paixões, ninho de fogo, que perdeu a destreza dos sonhos e se permite iludir, que na tristeza se reinventa, e na mente cria os mais diversos amores que jamais viverá. É por isso que falo de amor, porque a mim, vadio que sou, não me foi permitido amar.

Ricardo Rodrigues

Obs.: Você pode ter uma experiência bem gostosa 
se ler esse conto ouvindo baixinho a canção
 "Linda Flor" na voz de Zélia Duncan


Uma Flor Que Cai

     

     Alexia olhou para a xícara cheia de café fumegante sobre a mesa. Acompanhou com os olhos a dança da fina fumaça que a bebida quente liberava. As pernas trêmulas, os olhos marejados. Ela queria beber o café, mas o corpo não obedecia os comandos de seu cérebro. O desejo do corpo não se harmonizava com o estado de sua embaralhada mente.
     A primeira lágrima desceu tímida, desenhando um caminho na bochecha, borrando a maquiagem. Então veio a dor. Aquilo era novo para ela. Não era como cortar o dedo ou a enxaqueca que se habituara. Nunca havia sentido aquilo. Enquanto o coração parecia receber pequenas ferroadas causadas por mais de mil agulhas ao mesmo tempo, o pulmão contraía dificultando a respiração. No chão um porta retrato quebrado e uma foto rasgada.
     De repente o tremor das pernas se espalhou pelo corpo todo. Ela sentia calor e frio ao mesmo tempo. Seus olhos se mantiveram fixos na xícara. O café foi esfriando e a fina fumaça dissipou em um bailado derradeiro. Alexia não se moveu. Passaram-se horas e horas e ela ali com sua dor nupérrima, até que vencida pelo cansaço adormeceu naquela cadeira em que esteve sentada o tempo todo olhando para o que desejava beber e não conseguia.

     O sol lançava seus primeiros raios pela janela quando Alexia acordou. O pescoço doía pelo mal jeito no qual passou a noite. Embora sentisse a mesma agonia que na noite passada, ela conseguiu levantar da cadeira. Pegou a xícara e tocou com a ponta do dedo indicador o café frio. Esforçou um sorriso e levantou com a chávena na mão com o intuito de despejar fora a bebida na pia da cozinha. Sem olhar para o chão pisou sem querer no retrato rasgado. "Meu Deus!" exclamou antes de soltar a xícara que caiu como um relâmpago pela força da física e lentamente pelo registro dos olhos de Alexia que fotografou aquele momento em que a porcelana estourava no chão lançando pedaços em todas as direções. Ela não ficou preocupada em limpar a sujeira de cacos e café respingado por toda parte. Como se estivesse dominada por uma entidade mais forte do que ela mesma, caminhou como um zumbi até o quarto e automaticamente tirou um vestido de várias camadas sobrepostas de chiffon vermelho. Vestiu com cuidado, depois sentou diante da penteadeira e limpou o rosto com um lenço umedecido. Refez a maquiagem e finalizou com um batom da mesma cor que a roupa. Sorriu para a própria imagem no espelho e em seguida dançou pelo quarto uma música que só existia na sua cabeça. Só parou quando Maria, a diarista que vinha uma vez por semana a interrompeu.
     - Dona Alexia! - Chamou Maria fazendo a patroa voltar a realidade. - Bom dia! Tudo bem com a senhora?
    - Oi Maria! - Alexia retribuiu a cortesia um pouco assustada, não lembrava que era o dia da diarista vir dar faxina. Antes que Maria percebesse ela disfarçou o susto e o mal estar que sentia. - Comigo tudo ótimo e com você?
     - Mais ou menos. - respondeu Maria. - O elevador de serviço está quebrado de novo. Minha Nossa Senhora! - Começou a reclamar suspirando enquanto falava. - O Aroldo, aquele porteiro imprestável, disse que só vai consertar semana que vem. A senhora vai ter que me dar um extra hoje, o apartamento está uma zona e eu ainda tive que subir doze andares de escadas.
     Alexia ouviu mas não prestou atenção em nada.
     - Maria vai me buscar um cigarro. Acho que o maço está no aparador da sala.
     Maria bufou revoltada com a patroa que não lhe deu atenção, no entanto, se pôs a cumprir a ordem e foi buscar o cigarro. Alexia caminhou até a sacada do quarto e deixou o sol iluminar seu rosto. A funcionária chegou com o tabaco e ficou olhando para Alexia. "Ela está esquisita hoje. Que bicho lhe mordeu?" pensou a diarista. Sem dizer uma palavra ela tomou o cigarro da mão de Maria e colocou na boca mas não acendeu.
     - Ele não vem mais Maria. Desta vez foi para sempre. Não deixou nada. Nem ao menos uma cueca como desculpa para voltar depois. - Disse Alexia movimentando a boca com cuidado para não deixar cair o cigarro. - Gostou do meu vestido Maria? - perguntou ela, antes que Maria começasse a questionar como se deu a partida dele.  - Ele é todo em camadas.
    - É bonito! - Respondeu Maria, prestando mais atenção na atitude de sua senhora do que no vestido.
     - Nós também somos feitos de camadas. Tal qual este vestido aqui. Só que as nossas camadas são construídas pela dor. - Falou nem sem olhar para a funcionária, como se estivesse conversando consigo mesma.
     Antes que Maria pudesse fazer qualquer movimento, Alexia subiu na balaustrada e se jogou daquele décimo segundo andar. Sua queda foi tão breve quanto a xícara que quebrou mais cedo, no entanto ao invés de lembrar um receptáculo de porcelana, o vestido a fez parecer uma flor caindo, com suas pétalas balançando ao vento até explodir completamente despetalada no chão.

Ricardo Rodrigues

Cinzas


– Qual o problema? – Perguntou o amigo.
– Meus medos! – Respondeu Ivana.
– De certa forma todos temos os nossos medos. As fobias fazem parte da nossa vida. – Acrescentou o amigo. – São nossos medos que nos mantem vivos.
– Mas este medo que eu sinto é terrível. Não acredito que ele irá me manter viva. Muito pelo contrário, ele me aproxima da morte. Eu sinto isso.
– Você está sendo dramática Ivana, como sempre para variar.
– Não é drama meu amigo. Quem dera se fosse. Eu sei que sou dramática as vezes, mas não em relação a este medo que vem me consumindo dia após dia.
– Você já pensou em procurar um analista? Dizem que eles nos ajudam a trabalhar nossos medos.
– Nessa crise dos diabos você acha mesmo que eu tenho dinheiro para procurar analista? Desempregada, fazendo uma faculdade pública de merda em um curso que nem futuro tem.
– Talvez você consiga pelo SUS.
Ivana não controla o riso. Mas ela não sorri com felicidade, a risada é nervosa, é fria, é emoção sem equilíbrio, é contraditória, é desesperadora.
– Até que eu consiga uma vaga pelo SUS este medo já me devorou inteira. – Contrapôs Ivana a ideia do amigo. – Quando sair uma vaga eu já terei amarrado uma corda no pescoço.
– Essa coisa de amarrar a corda no pescoço é brincadeira né?
– Lógico que é! Mas tenho pensado em overdose de barbitúricos ou cortar o pulso e ver o sangue esvair até a última gota. Você já reparou o quanto o sangue é bonito? Há alguns dias atrás fui fazer um exame e me tiraram um bocado bom de sangue numa seringa enorme. Eu fiquei embasbacada ao ver como meu sangue é grosso e escarlate. Eu acho que ficaria pulcro ele escorrendo pelo piso do banheiro, criando desenhos abstratos pelo caminho trilhado.
– Para Ivana! Que assunto mais despropositado.
O silêncio paira naquela sala, Ivana aproxima do amigo que está sentado no sofá, pensativo, e repousa a cabeça no colo dele.
– Você tem um cigarro aí? – Pergunta ela, roubando-o do devaneio e o trazendo de volta para realidade.
– Tenho sim! – Responde o amigo tirando um maço de cigarros do bolso. Ivana pega, tira um cigarro, acende e dá uma primeira tragada profunda soltando lentamente a fumaça em seguida. O amigo guarda o maço no bolso novamente e fica olhando a amiga que lembra uma chaminé liberando aquela fumaça cinza com cheiro de tabaco. – Eu nunca tinha ouvido você falar na possibilidade de um suicídio antes.
– O suicídio nada mais é que uma consequência de nossos medos. – Responde Ivana depositando as cinzas de cigarro no cinzeiro acomodado no chão ao lado do sofá. – Não é drama meu amigo. O medo é real.
– Então me fale desse medo. Quem sabe eu não posso te ajudar.
– Você acredita no amor?
– Então você tem medo de amar?
– Não, não é isso. Eu não tenho medo de amar. Gosto de amar e sou até intensa nisso.
– Se você não tem medo de amar, explique, pois, o que o amor tem a ver com seu medo?
– Tudo. Afinal, não basta apenas que eu ame. Isso não é difícil.
– Estou confuso. Seja mais clara Ivana.
– Eu tenho medo de nunca ser amada. É isso que me consome e vai me matando um tiquinho, dia após dia. É terrível passar pela vida sem nunca experimentar a sensação de ser amada e desejada. No fim, não basta dar amor e não receber amor de volta.

Ricardo Rodrigues

Este conto é o quinto da série"Diálogos Absurdos"

A Oração de Geni



"Joga pedra na Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni!"

- Pai, afasta de mim este cálice da dor de ser quem eu escolhi e não o que queriam impor para mim. Pai tu conheces a minha vida pregressa. Muito mais que meus desejos da carne pulsante e intempestiva, conheces o meu coração. Fui o que fui, não me arrependo, fui muito mais que minhas escolhas, fui o verdadeiro fruto do barro do qual minha espécie foi feita.

"Joga pedra na Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni!"

- Pai, andei pelos mangues e becos, no cais do porto. Dentro de garagens e cantinas, tanques, matos e até monturos. Por ali estava meu corpo exposto para os prazeres que consomem a carne que um dia alimentará os vermes em rápida putrefação. Carne que serviu miseráveis errantes, cegos, retirantes, viúvas, detentos, moleques, velhos sem saúde e todo aquele sem tostões furados. Para eles eu dei um pouco de prazer, um pouco de riso, um pouco de gozo, neste vale da sombra da morte que é a vida.

"Joga pedra na Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni!"

- Cristo, sou a Madalena da modernidade, embora pouco nobre, em meu corpo houve salvação e redenção. Nos tempos da maldade... Na verdade o tempo da maldade nunca passou. Mas não deixei que afetasse minha bondade, a nobreza do meu coração. Naquela tarde em que um zepelim gigante apontou os seus canhões para cidade. Seu comandante, que cheirava a brilho e cobre, figura que me dava asco toda a sua nobreza, estava decidido a tudo explodir, a menos que comungasse do meu corpo.

"Joga pedra na Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni!"

- Mesmo com essa intensa dor que sinto agora, consigo me recordar bem dos olhos vermelhos do vigilante bispo, da maleta de dólares do banqueiro, os suplicantes pedidos do prefeito, que de joelhos implorava. Aliás, todos imploravam. Era o medo da guerra, o medo da morte alimentando os desesperos de cada desafortunado daquela cidade que gritava:

"Vai com ele, vai Geni! Vai com ele, vai Geni! Você pode nos salvar! Você vai nos redimir! Você dá pra qualquer um! Bendita Geni!"

- Como não me compadecer? Vós, ó Cristo, compadecestes do ladrão, da puta, do traidor e até mesmo de seus algozes. Oferecestes o teu corpo para o bem do mundo, também eu ofereci o meu para o bem daquele lugar. O comandante lambuzou-se a noite inteira. Desfrutou até da mais miúda parte do meu corpo. Saciado, partiu como chegou, desaparecendo por trás das frias nuvens de outono. Suspirei e pensei em voltar para minha vidinha de sempre, agora com o respeito e o carinho daqueles que salvei. No entanto, eles queriam muito mais que a oferenda do meu corpo, eles desejavam a carne exposta e o sangue escarlate escorrendo pela calçada. Nem bem amanheceu e a romaria tomou minha porta em cantoria:

"Joga pedra na Geni! Joga bosta na Geni! ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni!"

- Pai, perdoai-lhes! Eles não sabem o que fazem! 

"Joga pedra na Geni! Joga bosta na Geni! ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni!"

- Senhor, em tuas mãos, eu, Geni, travesti, profanada, prostituída, querendo ser amada, entrego o meu espírito.

Ricardo Rodrigues

Este conto é o quarto da série"Diálogos Absurdos"
História inspirada, baseada e com trechos da canção "Geni e o Zeppelim" de Chico Buarque composta em 1978
Imagem:  Cena do Clip Your Arms de Barbara Ohana


O Interrogatório


- Como foi?
- Pela vagina!
- Como assim pela vagina? Explique-se melhor!
- Foi isso que o senhor ouviu, doutor. Foi pela vagina.
- E isso não lhe causou danos?
- Danos? Acredite, ela já passou por coisas piores e sempre sobreviveu. Nada que água e sabão não resolvam.
- Você está arrependida?
- Não. Estaria arrependida se não tivesse feito.
- Não tem medo do que está por vir? A cadeia é um lugar inóspito e cheia de surpresas desagradáveis. Realmente não teme o seu futuro?
- Temo somente não poder trazer minha vitrola e o meu disco da Lesley Gore. No mais, estou sentido até um certo gosto de liberdade.
- Liberdade é tudo o que a senhora não terá a partir de agora.
- Desculpe-me doutor se rio, mas o senhor é muito inocente para um delegado. Acredita mesmo que liberdade se limita em estar presa ou solta? Isso é só uma parte dela. A melhor parte da liberdade está aqui dentro do peito, na leveza do corpo e dos sentimentos.
- Então este crime te fez sentir leve?
- Como um pássaro. Se tocasse uma música aqui agora eu dançaria sem parar.
- Mas para experimentar esta liberdade da qual fala, era necessário tanto?
- Era ele ou eu. Neste mundo já não havia mais espaço para nós dois. Ações extremas pedem reações extremas. Não sei se o senhor consegue me entender.
- Estou tentando! Ele te fazia se sentir ameaçada?
- Doutor, três vezes eu estive diante da morte. A última foi porque fugi e ele foi atrás. Aquele homem só podia ter pacto com o capeta. Conseguiu me achar. Não me matou porque uma amiga entrou no meio da confusão e me salvou. Mas todas as noites aquele bêbado imundo me batia, pegava uma faca e ameaçava cortar minha garganta. Fui humilhada, estuprada, espancada até o limite.
- Você poderia ter dado queixa.
- Acredito que as gavetas de sua delegacia estão repletas de boletins de ocorrência no meu nome.
- Então a senhora decidiu fazer justiça com as próprias mãos, acreditando estar no direito de tal ato?
- Eu deixei bem claro o que eu faria na minha última denúncia, que mais uma vez foi engavetada.
- E porque a senhora não fugiu depois do crime? Ao invés disso, dançou e cantou no enterro dele. A cena da senhora jogando bebida no esquife de seu marido nunca mais sairá da minha mente. É como se a senhora quisesse ser presa.
- O senhor chegou para me prender a tempo de testemunhar o desabafo de uma mulher que agora sim poderia dormir sem medo de não acordar no dia seguinte. Enfim, nunca tive pretensão de fugir. Sei o que fiz e estou disposta a pagar o preço.
- Você só não me contou ainda os detalhes do crime.
- Foi tudo muito simples. Ele adorava me fazer sexo oral. Só precisei passar um pouco de veneno na vagina e deixar ele lamber. O veneno agiu de forma rápida. Ele deveria agradecer por não sofrer e morrer com a cara enfiada num xibiu.
- Eu não sei se fico surpreso ou abismado com tamanha criatividade.
- Foram meses planejando.
- Dona Cibele, o resultado de tudo isso a senhora já sabe.  Está presa por premeditar e assassinar o marido de forma fria e calculista. Se não tem mais nada a acrescentar, eu irei encaminhá-la para uma cela.
- Só mais uma coisa.
- Diga!
- Me arruma um cigarro? Há horas que não dou uma tragada!

Ricardo Rodrigues

Este conto é o terceiro da série "Diálogos Absurdos" 


As Vizinhas


 - Menina, olha lá quem está vindo!
 - Mas aquela não é a Lucinha filha da Marieta ali do 12?
 - A própria!
 - Pois é Marlene, olha só como as ancas dessa menina cresceram rápido.
 - E não é que é verdade Olímpia. Olha os seios dela também, como estão grandinhos para a idade dela.
 - Reparei isso também.
 - Eu não quero levantar falso, mas la na venda do seu Juarez estavam comentando que ela foi vista aos amassos com o Eurico, filho do Major Loreto.
 - Mentira! Marlene, dizem que Eurico não vale uma cibalena. Embora o pai seja Major condecorado, o filho não puxou nem um tiquinho assim ó, do caráter do militar.
 - E eu não sei?! Falam por ai que ele descabaçou a Virgulina, aquela moça que amarrou uma corda no pescoço, lá da rua Goianases. Dizem que foi por isso que ela se matou, já que o pai dela quando descobriu queria jogar a menina na vida. 
 - Marlene isso foi só um pouco do que ele aprontou. A Cornélia ali do 14, me falou que ele é o pai do filho da Mariinha, a filha da Conceição, aquela mãe solteira aqui da rua. A Cornélia me disse que até em clínica de aborto ele levou a moça para tirar o filho, a sorte é que Mariinha fugiu. Jesus, Maria, José! Não quero nem pensar no pecado que ele iria fazer a pobrezinha cometer. Agora ele não quer assumir a criança de forma alguma.
 - Mas ali no caso da Mariinha é tal mãe tal filha, né Olímpia. Eu lembro muito bem que a Conceição era mais oferecida do que pastel de feira, quando era moça. A filha puxou a mãe nas sem-vergonhices. Pediu para ser mãe solteira também, aposto que se ofereceu todinha para o rapaz. Ainda bem que Deus me deu uma filha que é um verdadeiro anjo de pureza. Se Deus quiser e a Virgem Maria permitir vai casar virgem com flor de laranjeira no cabelo.
 - O fato, é que se a Lucinha não tomar cuidado vai ficar igual Mariinha, com um filho no bucho, além de chupar o dedo, porque aquele Eurico não vai ajudar ela com nada.
 - Menina do céu, olha a hora Olímpia, meu marido está para chegar e eu aqui de papo para o ar. Vou entrar e dar jeito de começar o jantar. Até mais vizinha.
 - Até Marlene!

**********

 - Mãe onde a senhora estava?
 - Conversando com a Olímpia!
 - A senhora estava metida com aquela vizinha fofoqueira de novo? Garanto que a língua de vocês deve estar cheia de calos de tanto malhar a vida alheia.
 - Você me respeita Carina, eu sou sua mãe. E depois, Olímpia é um amor de pessoa. Nós duas só debatemos fatos. Se não querem que a gente fale é só andar na linha.
 - E por falar em andar na linha, eu preciso contar uma coisa para senhora.
 - Qual a boa?
 - Não é fofoca mãe. É um assunto sério.
 - Não estou gostando desse tom mocinha.
 - Como não tem outro jeito de falar e eu sempre fui muito direta, vou falar de uma só vez. Então preste atenção.
 - Estou escutando, fale de uma vez menina.
 - Eu estou grávida do Eurico, filho do Major Loreto.

Ricardo Rodrigues

Este conto é o segundo da série "Diálogos Absurdos".